Faleceu o sócio fundador do Pé de Vento, Manuel António Pina



É com o nosso mais profundo pesar que comunicamos a todos os atuais e antigos colaboradores e também ao público em geral que o Sócio Fundador e Presidente da Mesa da Assembleia Geral de Pé de Vento, CRL, o dramaturgo e poeta Manuel António Pina, nos deixou.

Foram 34 anos geradores de uma nova e renovada dramaturgia que deram origem a uma estética teatral singular, construídas em parceria e cumplicidade artística, que começaram como ele próprio disse um dia:

No mistério da memória confundem-se sonho e realidade, vivido e invivido. O que lembramos (e o que esquecemos, pois o esquecimento é um particular e perplexo modo de memória) constitui uma “realidade” segunda, e uma “vida” segunda, feitas e desfeitas de uma matéria interior e absoluta que o desejo facilmente molda.
Vou (lembro-me que vou) ao volante de uma velha Diane branca. Sei que sou eu porque me lembro de um dia ter tido, ou de alguém, em mim, um dia ter tido, essa Diane… A meu lado vão a Maria João e João Luiz. Falamos os três de sonhos e de coisas reais… Acho que a Maria João e o João Luiz têm um sonho e que me falam dele (eram tempos propícios aos sonhos, esses, e sonhava-se sem querer e sem dar por isso, quase como se respirava).
Eu tive sempre uma estranha relutância em passar a porta dos sonhos dos outros.
… Mas alguns sonhos expõem-se, tão desmesuradamente diante de nós que é impossível continuar a fechar os olhos. O da Maria João e do João Luiz era uma companhia de teatro. Tinha nascido em algum lugar inacessível dos seus corações e dos seus motivos mais profundos, tinha sombriamente avultado e ganhado forma, natural e jurídica, e expunha-se agora à minha curiosidade e ao meu medo como um ser frágil e fecundo desejoso de viver. Como poderia eu enfrentar esse desejo?
Não sei se alguma vez alguém, de chofre, vos disse: “Tenho um sonho!”. E, depois, vos empurrou para dentro dele. É uma responsabilidade enorme saber de um sonho alheio e encontrar-se subitamente dentro dele, e é preciso ser temerário para não pensar então: “E se não sou capaz?”.
Por isso, a minha primeira ideia foi evadir-me. A Maria João e o João Luiz que fossem, pensei eu (ou penso que pensei), sonhar para outro lado.
… A mim já me bastavam os meus sonhos… Mas, sem me aperceber, eu tinha sido feito prisioneiro do sonho de ambos.
A velha Diane está agora parada em qualquer sítio da berma da estrada, e continuamos os três, a Maria João, o João Luiz e eu, a falar interminavelmente. Inventamos palavras. Enquanto o sonho, algures, latejante, aguarda, nós desajeitadamente celebramos sobre a sua cabeça o mistério das palavras, procurando as que serão capazes de o acordar e de o revelar. Porque os sonhos, como os seres todos, têm um Nome, um Nome único e irrepetível. E é preciso descobrir e enunciar esse Nome para que eles rompam a obscura e indiferente fronteira da inexistência.
… Muitas dessas palavras tornaram-se memória e esqueceram-nos (no sentido transitivo e no sentido intransitivo). Talvez eu próprio, a Maria João e o João Luiz sejamos, quem sabe?, também apenas memória. (in “Memória dos Dezoito Anos” do Pé de Vento)

Porto, 19 de outubro de 2012 

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